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Reflexões sobre o advento em tempos pandêmicos

Leio em vários lugares e ouço de várias pessoas a seguinte pergunta: “O que fizemos para merecer um início de século XXI como este?” e uma das respostas que vêm à minha mente é a exploração dos escravizados durante 4 séculos. Mas aí uma luz vermelha de PARE se acende na minha mente. Fosse uma espécie de retribuição histórica, só os brancos estariam sofrendo, só a classe dominante seria afetada. O que vemos e sentimos, no entanto, é que a população descendente desses povos retirados de África violentamente e obrigados a servir na América é ainda o que mais sofre com a atual situação.

Talvez a resposta passe por aí, mas não num nível cármico, mas numa perspectiva de compreensão de causas e conseqüências, de dialética histórica mesmo.

Hoje eu assisti a um vídeo de alguém explicando a doença da humanidade comparando com o Cosmos. Segundo ele, ao observarmos o Universo, as estrelas, os planetas e a vida no próprio Planeta Terra, as sinapses e reações químicas dentro dos corpos dos seres vivos, sentimos que o princípio básico é o da colaboração, da cooperação entre os vários fatores. Um átomo se combina ao outro, que se combina a outro e forma uma cadeia de carbono, que se transforma em proteína e se divide e assim a vida segue. No corpo humano, quando uma célula para de colaborar com a outra, gera-se uma doença, um tumor, um câncer. A mesma coisa em diversos grupos observáveis pela ciência.

Mas as sociedades contemporâneas se esqueceram da importância da colaboração entre as pessoas, entre os indivíduos que as integram. Tenho cá para mim que a nossa doença, da humanidade como um todos, é resultado dessa falta de colaboração e cooperação. Principalmente depois da década de 1990, com a exacerbação do neoliberalismo, as doutrinas econômico-financeiras implantadas tanto nos EUAN quanto na Inglaterra, por Ronald Reagan e Margareth Thatcher, que Satanás os tenha num círculo bem profundo dos infernos.

Foram tempos em que a ideologia do cada um por si e foda-se a sociedade ficaram de alguma forma mais importantes do que a ênfase no coletivo. Só que, principalmente depois da criação das sociedades complexas, isso é de uma imbecilidade cortante. Cada um quer ter seu carro, sua casa grande, sua fortuna, não se importando com o quanto de combustível fóssil, gases do efeito estufa, poluição, degradação ambiental isso possa custar.

O que vivemos hoje é, na verdade, o resultado desse egoísmo. A classe dominante saiu muito na frente nessa corrida pelo consumo e pela ostentação, mas como todos querem imitar os ricos, a violência, o toma-lá-dá-cá, a corrupção, principalmente de princípios, foram também exacerbadas para além do ponto sem volta. Não há mais como retroceder na degradação ambiental e as gerações futuras, se houver, arcarão com um preço impagável.

Enquanto escrevo isso, no dia 24/12/2020, estou no rio de Janeiro, vestindo calças e agasalho. É o terceiro dia do verão num país tropical e eu estou completamente vestido. O que isso quer dizer? O aquecimento global é uma verdade inelutável e, agora, irreversível.

Me lembrei agora de uma canção do Chico Buarque, Futuros Amantes. Há um trecho assim:

“E quem sabe, então
O Rio será
Alguma cidade submersa
Os escafandristas virão
Explorar sua casa
Seu quarto, suas coisas
Sua alma, desvãos
Sábios em vão
Tentarão decifrar
O eco de antigas palavras”

Isso me veio porque acho que essas palavras ficarão gravadas em algum escaninho, quando o Rio for uma cidade submersa no mar. Se houver gerações futuras, elas irão tentar decifrar esse nosso modo de vida e espero que percebam que fora do amor pelo próximo não há salvação para a espécie. E para várias espécies com quem compartilhamos esta nave louca chamada Terra.

E olha que nem cristão sou, mas já li os evangelhos e, quer o Yoshua lá retratado tenha ou não existido, quer fosse ou não divino e filho de uma divindade outrora vingativa e irascível, a mensagem difundida por Mateus, Marcos, Lucas e João é de um poder revolucionário e transformador. Deveríamos ler sempre, não com a perspectiva de uma religação a um plano transcendental, mas como um guia de vida prática. Talvez se realmente vivêssemos a mensagem ali inscrita, não estivéssemos atravessando tempos tão conturbados, tão cheios de ódio, rancor, egoísmo e crueldades.

Este ano de 2020 foi especialmente estranho, começamos com a notícia de que um ser, uma forma de vida que pertence mais à química que a biologia, se espalhou pelo planeta e nos obrigou a viver separados das pessoas que mais amamos. Não fora a internet e as videochamadas, talvez eu tivesse afundado na mais triste solidão, mas essa tecnologia foi capaz de me salvar, porque mantive uma atividade artística dentro do possível. Aulas de teatro, propostas cênicas e encontro semanal para discussões literárias me mantiveram são, mesmo que sozinho em casa.

Agora é natal, um feriado para muitos de celebração do nascimento daquele cara que inspirou as histórias contadas pelos já citados Mateus, Marcos, Lucas e João. Para mim, que não o tenho como divindade, é mais uma data anual para passar junto a minha mãe e minha irmã mais nova. Era a época em que eu visitava a família. Nos reuníamos, rezávamos, jantávamos, celebrávamos a vida. Este ano, estou só, minha mãe e minha irmã estão na casa delas, os tios do interior, cada um em sua casa. Agimos assim para sobreviver a esse vírus e poder atravessar essa fase tão triste e para termos outros feriados juntos.

Talvez isso tudo pareça sem conexão, sem coerência, mas eu não me importo. É tudo incoerente mesmo no mundo. A esperança, essa semente resiliente moradora do meu coração, me informa que a humanidade deve refletir sobre os caminhos a serem trilhados doravante. A devastação tem de ser revertida, temos de reflorestar, plantar, regar, para tentar colher um futuro para as gerações vindouras. E, de preferência, com mais cooperação.

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