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LITERATURA

O Sétimo Juramento – uma história de Paulina Chizane

Desde que entrei em contato com a literatura de Paulina Chiziane, tenho me encantado cada vez mais com as histórias narradas pela moçambicana vencedora do Camões.

O Sétimo Juramento – capa

Paulina é uma autora muito surpreendente para nós, brasileiros. As histórias dela nos incomodam profundamente, num lugar estranho para nós. É uma mulher de voz doce, olhos verdes e com uma imaginação profícua e cativante. Os livros lidos anteriormente, e sobre os quais escrevi, já dizem do meu sentimento de admiração pela autora: Niketche, uma história da poligamia e O Alegre Canto da Perdiz.

O pensamento africano e o meu encanto

A película é um libelo tremendamente impactante. Isso porque ela conta a história das Agojie, mulheres guerreiras temidas por quase todas as nações africanas até o final do Séc. XIX. Segundo fontes históricas, esses exércitos femininos foram formados, de fato, pela carência de pessoas do sexo masculino naquela região. Provavelmente como resultado da devastação causada pelos europeus, pois eles escravizaram populações inteiras ao longo de mais ou menos 400 anos.

O romance O Sétimo Juramento é uma história profundamente mística e reveladora da capacidade imaginativa de Paulina. Conta a história de David e sua família, numa luta constante por poder, riqueza e segurança. O caráter duvidoso do personagem principal é mostrado logo nos primeiros capítulos. Diretor de uma companhia de fabricação de açúcar, está envolvido com uma greve dos operários e, para sair da situação apertada, lança mão de mentiras e traições.

Este, aliás, é um dos aspectos mais cativantes da literatura de Chiziane. As personagens principais fogem do estereótipo do herói ocidental. A tradicional curva aristotélica é subvertida de forma deliciosa e a trajetória mostra uma humanidade da qual somos muito capazes de nos aproximar.

Paulina é ótima nas colocações e eu selecionei alguns momentos deliciosos:

“Existe razão nos receios de Vera [esposa de Davi]. Ser curandeiro é desprestigiante nas nossas mentes alienadas. É invocar conhecimentos e tradições que se pretendem banidas desde os tempos da inquisição europeia. É resgatar o ser e o saber de um povo desprezado, é dominar o conhecimento sobre a vida e sobre a morte. Ser procurado às escondidas por pessoas que recusam a sua identidade, mas que recorrem às raízes do seu ser quando a vida aperta. É arriscar-se a ser hostilizado e ondenado pelos senhores do mundo”.

Já aí me pega no conflito entre as tradições tribais violentamente extirpadas pelo colonizador europeu e a visão dos povos tradicionais de cada lugar. Não quero falar contra a ciência e reconheço o quanto a medicina avançou, principalmente depois da descoberta da penicilina, mas também acho que uma coisa não precisa ser necessariamente excludente da outra. Rituais místicos não curam, mas são fortalecedores do corpo e da mente de quem se submete ao tratamento, facilitando, comprovadamente, a cura de males e doenças.

Num outro momento, a mãe de Davi fala a Vera sobre a compreensão de vida a dois:

“Por vezes o lar são duas almas inimigas presas por um juramento, que se detestam, partilhando o mesmo teto, a mesma cama, a mesma mesa. São dois caminhos, duas visões do mundo, dois destinos antagônicos, que se martirizam, cada um tentando persuadir o outro sobre a verdade do seu mundo.”

Paulina e a questão da descolonização

Mas o capítulo que mais me chamou a atenção foi o XXXVIII. Nele temos uma fala sobre a descolonização imperdível:

“– Chamas então monstro ao homem que te amou e te levou ao altar? Como chamarás àqueles que bebem sangue das vítimas, que degolam e mutilam milhões de animais e homens, com arcos, flechas, metralhadoras, baionetas, punhais? que dizes então dos que fabricam pássaros de fogo, que vão pelos mares, vales, montanhas, largando fogos sem fim, transformando a terra num vulcão universal? Como chamarás então àqueles que fazem o mundo inteiro engolir fogo como pão de cada dia, e em nome da globalização fazem os povos abandonar os seus deuses para seguirem os mandamentos do deus da tecnologia, das bombas nucleares, dos órgãos de Stáline, senhores do fim do mundo e dos destinos dos homens de todo o planeta? Que pensas então dos que queimaram os nossos mutundos e as nossas magonas, fazendo acreditar que no ventre das mães existe apenas a escuridão e o feitiço, ensinando as crianças a comer granadas de mão porque a macate, a matapa, a chima, são alimentos de estômagos inferiores, subdesenvolvidos e analfabetos?

A nova geração come filmes de violência ao nascer do sol. Comem um prato de mina antipessoal ao almoço e jantão com bolinhos de granada. Que dizer dos que ensinam que a pureza é não procriar nem tocar no corpo da mulher, para acabar a vida como cães abandonados porque priorizaram a carreira, a profissão em detrimento da continuidade da vida? falas mal desse teu homem, teu negro. Que dirás então dos negros teus ancestrais que venderam os irmãos que se perderam nos mares da Europa, da América, em troca de aguardente, panos, missangas, futilidades que não valem sequer uma casca de amêijoa? como julgas então os homens que instigam os povos a abandonar a enxada e as sementes de pão, ensinando-lhes a semear as sementes dos netos e de todas as gerações que ainda hão de nascer? Como chamarás ainda aos que te ensinaram a olhar para o céu como salvação enquanto te tiram a terra e a tradição, deixando-te na absoluta miséria, para depois te darem uma esmola tirada do teu próprio suor, dando-te lições de tecnologias básicas para aliviar a pobreza em nome da ajuda humanitária?

Diz-me com franqueza, o que pensas dos que te trazem a civilização, obrigando-te a abandonar a natureza porque é selvagem, e colocam-te no paraíso do cimento e das estrelas do firmamento, para depois ficarem a desfrutar a riqueza do paraíso verde por ti renunciado? O que pensas ainda dos que, no mundo inteiro, em nome da paz, recrutam a juventude para batalhas universais, para lhes tirarem a vida, decepar os pés, as mãos, os olhos, deixando-os completamente inúteis e a rastejar como cobras, sem sonhos nem esperanças? O que pensas ainda dos que diariamente arrastam pessoas para o desterro, em nome da liberdade, da ordem e da nova consciência? O que pensas ainda dos que em nome de uma religião ou de uma raça promovem guerras e carnificinas para eliminar algumas espécies humanas colocadas no mundo pela mão do criador, para a perfeita harmonia da natureza? Comparando todos estes atos, o feitiço de teu homem é um jogo de crianças, muito insignificante. Os seus poderes não ultrapassam a família e a pequena empresa que ele dirige. Mais grave seria se tivesse poderes à escala de uma nação, ou de um império. Este feiticeiro é pequeno ainda e vieste em boa hora. De pequeno se torce o pepino.”

A ganhadora do Camões de 2021, Paulina Chiziane

Narrativa mística

A história de David tem um conteúdo místico, singular. De repente nos vemos imersos num universo de deuses sanguinários, fantasmas, zumbis, traições, força e muito, muito misticismo. A trajetória desse herói é peculiar para nós, porque não segue os 12 passos do herói, aos quais estamos acostumados desde Aristóteles e estudados por Joseph Campbell.

Esse passeio pelo universo das crenças e mistérios dos povos bantu é delicioso e nos surpreende com os vívidos detalhes dos meandros do sobrenatural. E ainda nos faz questionar a ética da busca do poder a qualquer preço e o quanto isso está impregnado de cultura europeia.

O livro está disponível na amazon.com tanto como livro físico como eletrônico. Eu recomendo demais.

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