Outro dia um amigo psicanalista me pediu para falar sobre a indenização pela ausência de amor paterno. Eu produzi um texto que, modéstia às favas, achei legal e, diante de uma grave doença do meu pai, resolvi compartilhar.
Aí vai:
No livrinho de catecismo da década de 80 havia um preceito católico que determinava a devoção e o amor filial eterno. Dizia o livrinho que deveríamos amar e honrar nossos pais (aqui entendendo o casal parental e não somente o cônjuge varão) acima de todas as coisas terrenas, atendendo, obedecendo e respeitando as diretrizes e normas por eles editadas. Por ser uma cultura machista, centrada na preponderância masculina, as crianças catequizadas tendiam a acreditar que o amor ao pai deveria ser ainda maior que o amor à mãe.
Só esqueceram-se de avisar que a recíproca nem sempre é verdadeira. Aliás, quase nunca o é. O pai, especialmente para a minha geração, era um homem preocupado em fazer dinheiro, manter e sustentar o lar e, frequentemente, amargurado por sentir-se preso a um destino inelutável e gerador de intenso sofrimento e angústia: a consciência de que tantos dependiam de seu sucesso financeiro para a sobrevivência. Talvez hoje, com a mulher/mãe ocupando cada vez mais o espaço econômico do lar, essa perspectiva seja um tanto amenizada.
Mas esse sentimento tão arraigado no inconsciente comportamental masculino não se altera em uma década. E hoje há ainda homens que se sentem tolhidos por terem constituído família. São comuns as piadas que falam mal da vida de casado, mas o desejo-espectativa de casamento e constituição de família ainda são uma tônica no imaginário de muitos. Mas os homens, por mais que se orgulhem da prole, porque associada à potência e virilidade, sentem o peso da dependência filial.
Por sobre tudo isso, há o despreparo para lidar com a criança. Esse ser tão incompreendido, cuja carência eterna pode se tornar num sumidouro de energia produtiva, depende totalmente dos pais por um grande período de suas vidas. E ninguém ensina o menino como tratar de outro menino. Isso é dever transmitido pelas mulheres para as meninas, por intermédio das brincadeiras de bonecas. Aos meninos, esse mundo é vedado. Para eles resta brincar de carrinhos, bolas, guerras, combates, ressalvadas as devidas e honrosas exceções.
Sem aprender a gostar das bonecas e dos bonecos como filhos na mais tenra infância, esse amor esperado pela sociedade – talvez pela pregação burguesa – não se consolida na fase adulta. Daí, vemos uma sentença como a que determina uma indenização ao filho pela falta de carinho paterno. Ou outra, que obriga o pai a amar o filho.
Impossível impor amor. Ou é aprendido ou conquistado, ou ainda transmitido, mas imposto, certamente resultará no seu oposto.
Quanto vale o amor paterno?
Quem tem pai sabe: nada substitui o carinho, o amor, a palavra amiga e de apoio e mesmo a reprimenda na medida certa da transgressão a ser corrigida. Meu pai sempre foi excelente provedor e, eventualmente, tenho a fantasia de somar e corrigir todos os gastos realizados com educação, alimentação, transporte e moradia durante os 20 anos em que dependi dele, transformar em moeda corrente e devolver-lhe tudo. Isso porque o meu pai sempre colocou o dinheiro acima de todas as relações. Para ele era mais importante ter do que ser. Sei que era essa a obrigação dele, mas eventualmente me esqueço disso.
Talvez por isso eu sinta tanta dificuldade de me pensar nesses termos: quanto valeria o amor dele por mim? Se ele não tivesse demonstrado da forma financeira todo o sentimento que sempre teve pelos filhos, como poderia compensar? Como poderia quantificar monetariamente a ausência e assim retribuir? Acho impossível.
Contudo, não há como ser contra uma decisão que pune o pai faltoso. Não era obrigação dele colocar uma criança a mais no planeta, ainda mais na atualidade, com a quantidade de métodos de controle contraceptivos disponíveis no mercado. Mas uma vez concebido, estabelece-se a obrigação constitucional de suprir a criança de meios de sobrevivência, educação e conforto compatíveis com as possibilidades parentais. É o que reza o art. 227 da Constituição Federal, in verbis:
“Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”
Como se pode verificar do texto aprovado em 1988, a obrigação é de todos, mas o início do texto enfatiza que, em primeiro lugar, cabe à família prover vida, saúde, alimentação etc. Caso essa falte, aí pode entrar, em socorro do infante, a sociedade e só à falta dessa, o Estado, que por natureza é despersonalizado e cruel, sendo, portanto, a pior opção de criação.
Ao final do artigo, são colocados deveres mais morais, pertencentes ao campo mais subjetivo, consubstanciados na proteção contra negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Isso talvez seja o mais próximo que o legislador possa chegar do que se entende normalmente por amor, já que amor é sentimento e não se traduz em palavras, mas em ações efetivas. Quem ama protege e, principalmente, dá carinho.
Daí, do ponto de vista legal, sou plenamente favorável à imposição, pelo poder judiciário, de retribuição pecuniária pela falta de amor. Por outra via, compreendo que a compensação financeira jamais poderá corrigir o erro e suprir a falta do amor paterno, cuja busca poderá ser inglória e frustrante, mas sempre causará grande comoção no psicológico.