Sei que não é meu lugar de fala. Jamais sofri com esse tipo de preconceito. Mas estou lendo um livro maravilhoso chamado Eu Sei Por Que o Pássaro Canta na Gaiola, da Maya Angelou. No capítulo 23 ela conta da formatura da turma do ginásio de 1940. É um capítulo tão estarrecedor, tão contemporâneo.
Nele, ela descreve as sensações da antecipação do grande momento escolar, a conclusão de um ciclo e as expectativas do que vai ocorrer no futuro. Pinta suavemente a situação da escola em que estuda, uma escola técnica do condado de Lafayette, obviamente frequentada somente por negros. A escola só prepara para os afazeres braçais. Ninguém lá pode aspirar a uma faculdade. Isso é reservado aos brancos. Ela conta do vestido que Momma, a rígida avó que a cria, prepara com muita dedicação e o máximo de carinho que é capaz, conta dos preparativos de todos os alunos, porque quem não vai se formar monta espetáculos de teatro, faz cenários, cuida da festa cozinhando, enfim, é um grande momento social. As crianças e os adolescentes do secundário ensaiam durante algum tempo, há um orador preparado pelos professores e um discurso a ser proferido.
No entanto, no meio da celebração, o candidato a governador do Estado interrompe e faz um discurso prometendo uma quadra pavimentada, mas contando que, para a escola dos brancos, ele obteve laboratórios, bibliotecas, etc. A interrupção causa em Margerite uma sensação de fracasso, impotência e um vislumbre tenebroso do futuro. Ela é uma menina de 10 anos que lê Jane Eyre, que se encanta com poemas de Edgar Allan Poe, mas para ela, o futuro está limitado a ser babá ou empregada doméstica de alguma casa de brancos.
Depois da fala do candidato, todo o auditório se escurece, a luz da esperança é apagada pelas palavras de desesperança proferidas pelo branco. A redenção, contudo, está na voz do orador. Ele havia preparado um discurso baseado no solilóquio de Hamlet. Enquanto ele falava, Marguerite pensa nas contradições entre o discurso do formando e o do candidato e se questiona se o garoto ouviu as palavras do branco. A pergunta que ela fez me trouxe lágrimas aos olhos:
“Houve agitação e ruídos em volta de mim, e Henry Reed começou a ler seu discurso, ‘Ser ou não ser’. Ele não tinha ouvido os brancos? Nós não podíamos ser, então a pergunta era perda de tempo. A voz de Henry soou alta e clara. Tive medo de olhar para ele. Ele não tinha ouvido a mensagem? não havia ‘mente mais nobre’ para Negros porque o mundo não achava que tínhamos mente, e deixava isso bem claro. ‘Fortuna enfurecida’? isso só podia ser piada. Quando a cerimônia acabasse, eu teria que dizer algumas coisas a Henry Reed. Isso se eu ainda me importasse. Nada de ‘conflito’, Henry’, ‘eliminação’. ‘Ah, existe uma eliminação’. Nossa.”
Esse parágrafo me trouxe à memória os recentes ataques à educação pública. A fala do presidente, antes de tomar posse, de que não podemos perder tempo com a área de humanas, que o conhecimento técnico é o que importa. A escola pública, nesse projeto, só servirá para treinar para profissões e atividades braçais. Quem tiver horizontes, talento acadêmico, potencial filosófico deve buscar escolas caras.
O livro traz uma realidade do Sul dos EUA, da década de 1940. São quase 80 anos e meio planeta de distância, e ainda estamos patinando nessa questão. Nós brancos temos sim de fazer mea culpa todos os dias e buscarmos, com todas as nossas forças, erradicar essa situação vexatória. Somos todos humanos! Somos todos humanos?
Excelente análise!
Em tempos de desgoverno, fica claro que educação é uma ameaça que eles querem combater. Além disso, a proposta do desgoverno para a área é reforçar essa dicotomia que determina o futuro das pessoas pela cor da pele ou pela origem social.
Triste!
Texto maravilhoso, Cris. Você conseguiu fazer um apanhado de dois assuntos importantíssimos, racismo e educação. Esta é peça fundamental para acabar com o racismo. Mais de meio século depois e nada mudou. Os EUA continuam enfrentando os mesmos problemas do passado, a segregação racial, e o Brasil intensificando o seu preconceito através de um governo fascista que incita o ódio de classe, de gênero, de raça, e com.um desmonte sistemático da educação. Épocas diferentes, mesmos problemas. Países diferentes, mesmos problemas. A história está aí para nos espelharmos e nos superarmos enquanto humanos que somos, sem distinção de raças. Mas a ignoramos e continuamos sucumbindo a ignorância.