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O Josias, colunista e blogueiro do UOL, escreveu hoje sobre questões de direito. Imagino que, com a faculdade de jornalismo ele se sinta autorizado a dar palpite em todas as áreas da vida, como é comum desses profissionais. Vou compartilhar o link aqui, para vocês lerem e verem do que eu estou falando:

https://josiasdesouza.blogosfera.uol.com.br/2019/09/26/o-que-estraga-acao-anticorrupcao-e-o-no-entanto/

Pois bem. Ele fala muito sobre o termo no entanto, que é uma locução que atua como conjunção adversativa, ou seja, liga idéias contrapostas, ligadas por raciocínio de mesma grandeza. É um sinônimo do mas, entretanto, etc.

Aí, ele tece comentários e prognósticos sobre o comportamento dos juízes da Corte Suprema com um grau de desconfiança bastante expressivo. No fundo, o medo dele não é que a tal operação redentora da corrupção nacional (hahahahahha) a Lava-Jato, seja liquidada por conta de uma filigrana jurídica. O medo dele, e isso ele nem conseguiu esconder, é que o preso mais ilustre seja libertado.

Os advogados de defesa de Lula, com teses bem mais consistentes do que esta, não conseguiram reverter a injusta condenação. Reparem, eu tenho a seguinte crença: é impossível conviver tanto tempo na política sem sujar as mãos. Contudo, a condenação do Lula é o sinônimo perfeito do medo dazelite de o deixarem concorrer, porque no voto ele seria imbatível. Como sempre, digressões.

Volto ao Josias e ao assunto jurídico. A questão a ser analisada pelo Supremo é, na verdade, a proteção ao princípio constitucional do contraditório e da ampla defesa. Segundo este princípio, a acusação tem de falar primeiro, expor todas as teses, todos os fatos que pesam contra o acusado, possibilitando, então, a argumentação ponto a ponto desses itens pela defesa.

O que os juízes da Lava-Jato fizeram, além de todas as irregularidades reveladas pelo site IntercePT (não resisti), foi oferecer prazo igual para todos os réus apresentarem alegações finais. Numa análise perfunctória isso está correto. O Código de Processo Penal prevê o prazo comum para todas as defesas falarem em sede de alegações finais. Mas em havendo delação de um corréu contra o outro, a mim me parece que fere o princípio da ampla defesa e do contraditório.

Explico. O processo penal, grosso modo e num resumo bem sintético, funciona assim: o Ministério Público, ao saber de um crime, oferece uma denúncia que o juiz recebe ou rejeita. Recebendo, cita o réu para apresentar alegações preliminares. Com base nessas duas peças o juízo chama para uma audiência de instrução e julgamento, ocasião em que serão ouvidas as testemunhas apresentadas pelas partes e interrogado(s) o(s) acusado(s). O juiz então analisa todas as provas e, se houver suficientes provas de que o acusado tenha de fato cometido o delito, o condena. Se não, absolve.

Há diversos princípios que regem essa delicada relação jurídica. Dentre eles, destaco, pela relevância para tratar do caso, três: inércia do juiz, devido processo legal e contraditório e ampla defesa.

O primeiro informa que o juiz, no sistema penal brasileiro, é inerte. Não lhe cabe buscar provas, nem, salvo raríssimas exceções, agir por conta própria. Tudo lhe é pedido. Ao final de cada peça apresentada pelas partes deve haver um “pelas razões de fato e de direito expostas, venho requerer tais e tais atitudes de Vossa Excelência”. O segundo diz que o processo penal se regula pela lei posta e tem sistemas de verificação objetivos.

O terceiro, e mais importante para o tema, fala que a todos os acusados em processo penal é garantido o direito de responder a todas as imputações. Ou seja: a acusação deve sempre falar primeiro, para o réu saber de que fatos se defende. Ao juízo cabe resguardar a aplicação mais abrangente possível desse direito.

Bem, nos casos da Lava-Jato, temos indivíduos que foram presos preventivamente e, depois de muito tempo sem julgamento, lhes foi oferecida a possibilidade de fazer a tal delação premiada. O que isso quer de fato dizer: você me conta o que sabe e eu alivio a sua barra na pena, ou até te concedo a liberdade. Na minha opinião, a irregularidade já começa aí. A delação só devia ser aplicada aos réus que ainda não foram processados, que não foram aprisionados. Oferece-se a eles o direito de, antes de ser formado o processo, se ele contar tudo o que sabe e entregar os comparsas no crime, a pena será reduzida ou pode até mesmo nem haver processo. Mas as delações não podem ser simplesmente contar o que sabe. Os fatos têm de ser reais e passíveis de comprovação. “Eu ouvi o João falar pro José que ia matar o Manuel, por isso o João deve ser o assassino” não pode servir, isoladamente, só porque Manuel foi morto, para condenar o João. Quem sabe o José, sabendo que eu tinha ouvido, matou o Manuel porque dele também sentia raiva? Assim, só eu contar que ouvi pode servir de indício, pode auxiliar na investigação, mas não serve como única prova. Acho que me fiz entender.

Pois bem. Se eu fosse réu no mesmo processo do João e do José sobre a morte de Manuel, tudo o que eu contasse da empreitada criminosa, tinha de estar subsidiada por fatos comprovados. Além disso, se eu apontasse um dos dois como culpado, para atender ao princípio da ampla defesa e do contraditório, o apontado teria de falar depois de mim, para se defender, inclusive, do que eu disse e contei.

Embora pareça óbvio, porque essas ilações têm relação direta com a liberdade do preso mais famoso do Brasil na atualidade, a banca está se tremendo de medo. E tem muita gente poderosa envolvida na falcatrua e que se beneficiará de uma possível anulação dos processos.

Aí há ainda pelo menos mais um ponto imprescindível que deve integrar essa equação polinômica: é possível e permissível ao poder público utilizar-se de uma ilegalidade para revelar outras? Esta negativa já foi princípio basilar das sociedades democráticas. Vigorou impassível até os atentados de 2001 contra os EUA, quando as novas leis de investigação alargaram os limites da invasão da vida privada pelo Estado. Atitudes, até então ilegais, passaram a ser incentivadas. Aqui no Brasil a coisa sempre foi meio bagunçada, mas havia um verniz. Os juízes da Lava-jato, pelo visto, romperam essa casca de civilidade falsa, apoiados na ira despertada na população contra o ex-presidente Lula.

E eles cometeram, pelo que se viu, verdadeiros atentados contra a normalidade do processo penal. Não que fossem, neste caso, a exceção. É muito mais comum do que se supõe ver inocentes pararem atrás das grades por conta da cor da pele, do grau de instrução e da classe social.

Mas a questão continua me incomodando: O Estado pode quebrar as normas que se impõe para prender alguém considerado inconveniente?

Para mim, a resposta é não. Mas o que o Josias insinua é que o direito deve servir somente à classe dominante. É, para mim, um texto bem calhorda.

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