Deixei de publicar um texto ontem sobre a abolição da escravatura em terras brasileiras porque penso que o dia 13 de maio, por marcante que seja a publicação da lei sancionada pela princesa Isabel, não é a data mais importante a ser lembrada nessa história. O que realmente deve ser levado em consideração é o que ocorreu a partir do dia 14 de maio.
A tal lei de abolição da escravatura aconteceu depois de muita luta e muita resistência. Os latifundiários brasileiros, descendentes de elites portuguesas de muito tempo exploradoras da classe operária, não deram importância aos ventos capitalistas surgidos na Europa a partir do Séc. XIX. Não perceberam a importância de se criar um mercado consumidor e continuaram prendendo o Brasil a uma estrutura feudal, agrícola e atrasada, muito embora houvesse ventos de mudança.
A revolta dos escravos iniciou a abolição da escravatura
Várias revoltas dos escravizados vinham acontecendo e diversas leis antiescravidão vinham sendo aprovadas, com destaque para a proibição do tráfico, publicada pela regência do imperador Pedro II em novembro de 1831. E este é um exemplo antigo de “lei que não pega”. Embora proibido, o tráfico de pessoas escravizadas permaneceu ativo e lucrativo até a abolição propriamente dita. Foi a época em que o Cais do Valongo se tornou um dos pontos de importação clandestina de humanos.
É muito vergonhoso e, enquanto não exorcizarmos essa história, estaremos condenados a viver nesse país de injustiças sociais gritantes.
Passados mais de 20 anos, depois de muita pressão internacional e muita revolta interna de escravizados, foi publicada a Lei do Ventre Livre, segundo a qual os filhos de escravizadas eram livres, publicada em 1871. Mas, enquanto na escola eu aprendi somente isso, os livros não contavam da pegadinha: os senhores dos escravizados tinham duas opções, a de permanecerem tutores desses filhos libertos até a idade de 21 anos, e só então eles seriam libertos sem a necessidade de indenização, ou libertá-los aos 8 anos de idade, em troca de uma vultosa quantia em dinheiro.
A cruel lei do sexagenário
Depois, veio a lei do sexagenário. Esta, então, é um verdadeiro escárnio, porque nem pessoas livres viviam muito mais do que 50 anos no séc. XIX. Para dizer a verdade, quem chegava aos 45 já era considerado ancião.
Com isso em mente, chegamos a 1888, quando, depois de intensas pressões internas e externas, a princesa finalmente resolveu abolir de vez a escravidão. E depois?
Bem, depois a negrada que se vire! Houve um refluxo de ex escravizados voltando para terras africanas, mas sem saber a que etnia pertenciam, de que território haviam sido seqüestrados seus ancestrais, se ainda tinham parentes vivos. Vários deles fizeram fama e fortuna em terras africanas, mas não era a regra.
E aqui no Brasil?
Ao negro era vedada a entrada em escolas, a propriedade de terra, o acesso a cargos públicos e essa situação avançou pelo séc. XX afora, sem que o poder público fizesse algo para mitigar as adversas situações em que essa população se encontrava. Ao contrário, perseguia e invisibilizava cada vez mais.
O mito da democracia racial contribuiu enormemente para essa crença de que aqui não havia racismo, porque as leis de apartamento, comuns em países como os Estados Unidos da América do Norte e África do Sul, não existiam aqui. No Brasil, os descendentes dos escravizados lutavam com um tipo de preconceito muito mais perigoso e difícil de combater. Falo daquele que nos é transmitido nos ensinamentos desde a mais tenra infância, aquele que passamos a vida ouvindo e aprendendo. Portanto, isso entra em nossa mente, até que um dia, alguns tomam consciência e abrem os olhos para essa realidade cruel que insiste em permanecer.
Um dos resquícios mais perversos dessa cultura é a empregada doméstica. É comum ouvir de pessoas com poder aquisitivo um pouco maior: “mas você não tem alguém que te ajude?” No entanto, as duas coisas que incomodam profundamente nessa frase são o verbo ter, aplicado no sentido de possuir, e o verbo ajudar. Demorou para eu perceber que tarefas domésticas são intermináveis. Todos os dias gastamos um tempo as executando. Lavar, passar, cozinhar, limpar e arrumar a casa, lavar louça, cuidar de animais domésticos, quando os temos, cuidar dos filhos em todos os sentidos. Elas são, como disse, intermináveis e incontornáveis. A única forma de não as realizarmos é contratar alguém que o faça por nós.
A crueldade está enraizada na tradicional família brasileira
No Brasil, muita gente, com a hipócrita desculpa de que está fazendo caridade, traz meninas e adolescentes do interior para a cidade grande para realizar essas tarefas. Depois, não quer pagar o salário justo e adequado por considerarem-nas “quase da família”.
Um amigo refletiu que uma das causas da queda de Dilma Rousseff foi, na verdade, a aprovação da Emenda Constitucional proposta por Benedita da Silva que equiparou as empregadas domésticas a trabalhadoras comuns, conferindo-lhes todos os direitos garantidos no art. 7º da Constituição Federal, tais como jornada inglesa, fundo de garantia, horário de descanso. Madames devem ter achado um absurdo não poder mais explorar essa mão de obra enquanto elas ficavam em cabeleireiros. Certamente a classe média, sempre acostumada a ter alguém que fizesse essas tarefas, pirou. Como equilibrar no orçamento doméstico uma pessoa que tem direito a um piso salarial e vai trabalhar de 8 às 5, com uma hora de intervalo para refeição? E todos os acessórios e encargos tributários decorrentes? Por isso as famílias perceberam que manter a casa tão impecável quanto antes, pesaria bastante.
No entanto, isso garantiu a essa massa de trabalhadoras (a esmagadora maioria de empregadas domésticas é mulher), uma situação antes inimaginável. Elas tinham tempo de estudar, de viver, tal como suas patroas.
Mas ainda há outros reflexos desse 14 de maio de 1888: as periferias e favelas das grandes cidades, os acampamentos rurais precários, as comunidades quilombolas desassistidas pelo poder público.
Portanto, é essa a razão pela qual ontem me abstive de comentar a tal Lei Áurea. Precisamos aprofundar muito a discussão da igualdade e da justiça social no Brasil. Estamos atravessando o refluxo das conquistas, mas isso é uma reação comum na história, o pêndulo voltou e, parece que rapidamente, atingiu o ápice (espero). Não marchamos inexoravelmente para o futuro. Há passos adiante e atrás, marchas e contramarchas, ações e reações.
Devemos sempre refletir o que vivemos hoje como conseqüência do que nos trouxe até aqui, e agir a partir disso para corrigir os rumos. E lutar contra o racismo internalizado é função de todos nós.