LITERATURA

comparações entre alemanha 1933 e brasil 2018

Terminei de ler hoje o Dr. Fausto, do Thomas Mann. Foi o primeiro livro dele que gostei. Não é fácil ler A Montanha Mágica – não consegui terminar – e achei Morte em Veneza bem chato (me julguem). Mas Dr. Fausto me pegou. Foi o segundo livro daquele grupo de leitura com o qual li Um Defeito de Cor, da Ana Maria Gonçalves.

Antes de falar do livro propriamente dito, é bom lembrar que o tradutor de Thomas Mann no Brasil, Herbert Caro, é um imigrante. Outro dia o Eurochannel num programa sobre exilados, contou um pouco sobre essa pessoa fenomenal. Veio para o Brasil e, em 3 meses, já falava português melhor que muito literato daqui. Tanto que traduziu toda a obra de Mann. Não sei se foram amigos na Alemanha, mas garanto que a tradução transpira carinho e devoção. E é muito impressionante o domínio do vernáculo. Herbert atinge a proeza de construir sentenças como um nativo, isso tendo aprendido em tempo exíguo. Muito digno de nota.

Dr. Fausto é um romance intrigante. O narrador, Serenus Zeitblon, vai contar a história de Adrian Leverkhün, um compositor erudito do princípio do século XX, sua trajetória da Alemanha imperial até a morte durante a ditadura nazista. É uma magistral tessitura de três tempos, o da história, o da descrição da história, e o momento em que a história será disfrutada. Para o meu caso, é especial demais, porque estamos atravessando um período em que parece que nossos compatriotas estão galvanizados por um discurso autoritário, misógino, de morte, tão saprófito quanto o discurso do Adolf.

Eu conheço quase nada da história da Alemanha, especialmente da anterior à guerra mundial (não chamo de segunda, porque não considero que a que ocorreu entre 1914 e 1919 envolveu apenas países europeus, e este blog é meu, escrevo como quero. Sei que os historiadores, com muito mais propriedade, discordam de mim, mas não ligo). Sou somente um apreciador da estética germânica. Gosto da literatura, do cinema, do teatro deles. Sou fã de  Fassbinder, Günter Grass, Herzog, Brecht, etc. mas nunca me aprofundei na história.

De toda sorte, superficialmente, temos uma guerra na segunda década do séc. XX que arrasou o País, uma república que gerou uma inflação exacerbada e, em seguida, a ascensão do regime cruel imposto por Adolf Hitler com a conivência de grande parte da população alemã. Talvez tenha contribuído muito para essa histeria, a noção de que aquelas pessoas teriam uma destinação de domínio das demais populações do Planeta Terra tão somente em virtude da aparência. Achavam-se arianos, descendentes dos deuses, destinados ao mando, sei lá. O fato é que o alemão médio não se importava com o que ocorria com os judeus, negros, eslavos, homossexuais, ciganos e tantas outras categorias perseguidas e assassinadas pelos nazistas.

Mann era um humanista. Discordava disso e se exilou com a família na Suíça, indo mais tarde para os Estados Unidos da América do Norte. Nessa condição, criou um narrador conivente com o regime, uma pessoa comum, admiradora de um gênio da música, que se propõe a contar a biografia desse erudito.

Algumas passagens são árduas para quem não entende de música, mas a narrativa tem um ritmo instigante. Dá para passar por cima sem prejuízo do essencial.

Lá no final, há um parágrafo que se destacou. Transcrevo-o:

Thomas Mann, in Dr. Fausto, Capítulo XLVI

“Entrementes, um general transatlântico obriga os habitantes de Weimar a desfilarem diante dos crematórios do campo de concentração vizinho e declara – deve-se dizer: injustamente? – cúmplices a esses cidadãos, que, sob a aparência da honestidade, tinham andado ocupados com seus afazeres cotidianos, tentando ignorar tudo, posto que o vento vindo de lá lhes assoprasse nas narinas o fedor de carne humana queimada; explica-lhes que também eles participam da culpa das atrocidades agora reveladas e impele-os a vê-las com seus próprios olhos. Que as contemoem – eu aconteplo-as junto com eles, no espírito, deixo arrastar-me por suas fileiras apáticas ou apavoradas. Arrombados foram os espessos muros do calabouço de torturas, no qual um governo ignóbil, desde sempre devotado ao nada, converteu a Alemanha, e nossa vergonha está exposta abertamente ao mundo, aos olhos das comissões estrangeiras, às quais se exibem em toda a parte essas inverossímeis visões e que relatam em seus países que os espetáculos avistados ultrapassam em nojo tudo quanto a imaginação humana possa conceber. Repito: nossa vergonha. Pois será mera hipocondria confessar que tudo quanto é alemão, inclusive o espírito alemão, o pensamento alemão, a fala alemã, foi atingido da mesma forma por esse desnudamento humilhante e deixou por completo de merecer confiança? Será compunção mórbida perguntar como, no futuro, “a Alemanha”, sob qualquer aspecto, poderá se atrever a abrir a boca em assuntos concernentes à humanidade?”

Esse parágrafo me fez pensar em várias coisas sobre a nossa trajetória enquanto País. Durante alguns anos, vivemos sob o misticismo do brasileiro cordial, como se fôssemos um povo “gente boa”, misturadão, e por isso aqui não haveria racismo. Isso seria coisa de África do Sul e EUAN. Mais recentemente, com as políticas de cotas para negros nas universidades, essa realidade foi confrontada e o conceito totalmente destruído. Não somos cordiais e a nossa “mistura de raças”, muito antes de ser uma bênção, uma coisa maneira, é derivada do estupro.

E quando li o parágrafo que citei acima, fiquei pensando: a Alemanha se recuperou e hoje é uma nação rica, próspera, respeitadora dos direitos humanos e com horror ao passado de destruição. Nós mais ou menos temos orgulho do passado escravocrata.

E isso causa uma neurose cultural muito bem estudada por Lélia Gonzalez. Li um capítulo do livro recém editado Por um feminismo afro latino americano. Foi uma explosão na minha cabeça. Por meio da psicanálise, Lélia nos leva numa viagem pelos meandros do racismo e como ele funciona para a mulher negra. Foi o capítulo “racismo e sexismo na cultura brasileira”. Nele, a autora tece com absoluto domínio do conhecimento erudito, mas se expressando de maneira que qualquer um que a leia a compreenda, uma observação arguta sobre essa nossa neurose. Fomos criados por mães pretas e delas aprendemos a cultura, a língua e a fala, os modos de amar e de nos relacionar. A mãe branca somente nos pariu e nos deu o idioma, mas não a língua, não o modo de nos comunicarmos.

E nesse capítulo ainda nos informa de que, quando vamos falar de cultura brasileira, o que nos vem à mente: samba, bumba meu boi, maracatu e caboclos de lança, feijoada, umbanda e candomblé. Acho que é uma falha narcísica de nós brancos quando acordamos para esse fato. A cultura brasileira mesmo tem profundas raízes no povo que para cá veio covardemente escravizado.

Talvez, para superarmos toda essa situação, fosse necessário que desfilássemos em frente a pelourinhos, grilhões, porões, senzalas e nos fossem expostos os instrumentos de tortura com os quais os senhores de pessoas escravizadas os dominavam pela dor. Talvez, expostos a essa profunda vergonha, pudéssemos superar essa falha imensa e nos reconciliarmos com a humanidade perdida do nosso País. 

  • Mariana Imbelloni

    Texto maravilhoso como sempre. Achei a conexão bem interessante porque é uma certa conexão de diagnóstico, chegando de onde nossos arianos-neuróticos-atuais, e os não tão neuróticos assim, deveriam andar. Único incômodo acho que foi a palavra erudito quando você está falando da Lélia. Por mais que na frase seja como uma oposição à linguagem leve do texto, achei a adversativa ali um resquício de legitimar ela frente a um conhecimento balizado. Ela falou isso mas ó, lendo o que a gente chama de erudito, sabe? Nosso caminho para conseguir superar essa oposição erudito-popular ainda é grande e não quero fazer controle de linguagem, mas dividir o incômodo. Afinal, a gente precisa dizer que o texto é erudito (baliza teórica reconhecida) mas acessível?

  • VALESKA FATURETO LOPES

    Gostei muito. Apenas uma observação – Homem cordial não quer dizer cordato, quer dizer que vem do coração, da proximidade, intimidade. Foi esse o sentido que Sergio Buarque de Hollanda quis dar ao se referir ao brasileiro como Cordial.
    Aqui têm mais detalhes:
    https://tab.uol.com.br/noticias/redacao/2020/05/16/como-o-mito-do-homem-cordial-embaca-a-percepcao-sobre-o-brasileiro.htm

  • Alex Meireles

    Talvez a diferença entre a Alemanha e o Brasil, tal qual a Argentina e o Brasil, seja o fato de terem encarado a transição… nossa passagem da ditadura para a abertura, enterrando o passado, sem punir culpados, uma anistia geral, que não diferencia grandes e pequenos criminosos, cria uma sociedade em que se crê que tudo se pode fazer que será “perdoado” (ou colocado para debaixo do tapete).

  • Talvez a diferença entre a Alemanha e o Brasil, tal qual a Argentina e o Brasil, é o fato de terem encarado a transição… nossa passagem da ditadura para a abertura, enterrando o passado, sem punir culpados, uma anistia geral, que não diferencia grandes e pequenos criminosos, cria uma sociedade em que se crê que tudo se pode fazer que será “perdoado” (ou colocado para debaixo do tapete).

    • A

      Essa é a nossa mania. O Rui Barbosa promoveu uma queima de arquivos quando da libertação dos escravos, impedindo-os de conhecer a origem. Nossa história é repleta desse recalcamento do mal, da sombra. Concordo totalmente.

  • Excelente texto.

    Se conseguimos virar uma Alemanha daqui há 10 anos, até fico um pouco mais animado.
    Mas sem investimento em educação e pesquisa, fica difícil.

    E isso só será possível se dermos uma guinada à esquerda.

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