Li dois livros da agraciada com o Prêmio Camões deste ano, Paulina Chiziane, a moçambicana de olhar plácido e fala mansa. O primeiro foi Niketche, Uma História da Poligamia e o segundo O Alegre Canto da Perdiz.
Paulina Chiziane e sua obra
Ambos dizem respeito a um mundo totalmente diferente do nosso. No primeiro, a autora traz a história da primeira mulher de um polígamo. Ao acompanhar o sofrimento dela, sempre me perguntava por que ela não dava fim a essa relação que, pela descrição dela era totalmente abusiva. Na primeira metade do romance, não conseguia ter empatia ou me compadecer da personagem, mas estava pensando com a minha cabeça de ocidental, eurocentrado, século vinte e um. Da segunda metade em diante, algo aconteceu e eu passei a me identificar mais com Niketche, em especial porque exigir da humanidade a monogamia eterna é um conceito vitoriano absolutamente antinatural, na minha opinião.
Mais recentemente li O Alegre Canto da Perdiz. Um libelo anticolonizador.
Ao narrar a atribulada trajetória de Delfina, Chiziane nos traz a visão do colonizado pelo lado de dentro. A abertura do romance me trouxe uma ternura e uma lembrança de várias pessoas cujo contato com a realidade parecia perdido, vagando pelas cidades e alvo de desprezo, nojo e preconceito de nós burgueses bem limpos, diariamente banhados, alimentados, abrigados contra as intempéries. O fio se estende e a história dessa mulher vai se desvendando lentamente.
Chiziane é uma excelente narradora. Mas nos dois livros que li, certamente senti o eco da tradição de oralidade, tão presente entre nós de Candomblé. A linha do tempo do romance O Alegre Canto da Perdiz vai e volta, às vezes me pareceu um pouco confusa, para logo me reencontrar com os personagens de forma mais harmônica. Uma das passagens em que me senti mais conectado com essa forma ao mesmo tempo cortante e lírica é essa:
No que diz respeito ao anticolonialismo e à descolonização, me permito transcrever um trecho do posfácio:
A Metrópole agraciou essa colonizada com um de seus prêmios literários mais importantes e isso tem um imenso significado, porque, para mim, O Alegre Canto da Perdiz é um libelo anticolonização e um “manual para descolonizar o pensamento”. Os conflitos de Delfina com o marido nativo, a quem obrigou a se assimilar, com o amante português, de quem obteve melhor posição social, com os pais, mais precisamente com a mãe, de quem herdou a primeira profissão praticamente obrigada pelo pai, com os filhos do primeiro e do segundo casamento, são um retrato dos conflitos que identifico em mim e em muita gente que conheço.
No entanto, esse conflito reside na busca de uma cultura original, mas verdadeira, em guerra contra a mentalidade eurocentrada da academia, das noções estéticas brancas e “elegantes” que, certamente, prefiro chamar de “sofisticadas”, no sentido de falsas e mentirosas, impostas pelo colonizador.
O Alegre Canto da Perdiz é um livro que deve ser lido e relido, até nos conscientizarmos de que podemos ter originalidade.