O Avesso da Pele é uma jornada íntima e uma busca pela vitória contra o racismo estrutural. Vencedor do Jabuti 2021, é necessário.
A polêmica causada por uma diretora de escola do Rio Grande do Sul (só poderia ser), pedindo a exclusão de um livro tão imprescindível para o Brasil contemporâneo, resolvi republicar este post.
Eu já havia ficado profundamente impactado com a leitura da primeira vez. Da segunda, é ainda mais triste. Não sei se porque venho me aprofundando cada dia mais na questão do preconceito racista impregnado em cada um de nós, venho lendo mais romances de escritores e escritoras negras e acompanhando com atenção os noticiários relacionados ao assunto, mas o fato é que cada linha do romance me dá um nó no peito, um frio na boca do estômago.
Ainda estou na metade do livro, mas o narrador nos esmurra a cada página, contando a história dos pais, de como se conheceram, de como sofreram tanto ao longo de suas histórias, desde que se reconheceram como pessoas negras.
O início da jornada de autoconhecimento pelo avesso
A mãe, Martha, Marthinha, perdeu a mãe atropelada, enquanto perambulava embriagada por uma rua de Porto Alegre. Adotada à brasileira por Madalena, uma professora de sociologia meio bicho-grilo catarinense, mãe solo de Rose, da mesma idade de Martha, a leva para viver numa região afastada da cidade, um rancho rústico. Marthinha, aos 13 anos, ouve na praia que era uma mulatinha deliciosa. Tipo de coisa nojenta que os homens dizem (de todas as cores), como se fosse a coisa mais natural do mundo.
Henrique, o pai, sofreu torturas desde a creche, quando as professoras queriam saber o limite de dor da criança negra e apertaram os dedos dele na porta, de propósito, quando ele ainda tinha 4 anos.
Uma luta constante contra o racismo estrutural
Parece exagero, mas sabemos que não é. A sociedade branca, especialmente até a segunda metade do séc. XX, era profundamente racista, sádica, perversa com os negros.
E não adianta tentar vir com as desculpinhas de sempre: “eu até tenho amigos negros”, “ela é quase da família” e frases quetais, tão asquerosas quanto a própria hipocrisia que as dita. Ainda estamos atravessados pelo preconceito, e ele vai surgir em cada situação de estresse.
Jeferson Tenório nasceu no Rio de Janeiro, em 1977, mas se mudou para o Rio Grande do Sul. Formou-se em Letras pela UFRGS, é mestre em Literaturas Luso-africanas pela mesma Universidade e atualmente está se doutorando pela PUC-RS (dados obtidos no site http://www.letras.ufmg.br/literafro/autores/1239-jeferson-tenorio).
Antes de O Avesso da Pele, Jeferson havia escrito O Beijo na Parede e Estela sem Deus, ambos editados em Porto Alegre (e que já entraram na minha lista de desejos) e também narrados em primeira pessoa, por personagens adolescentes. Todos os livros, pelo que apreendi do site, tratam do problema da negritude no Brasil. As carências materiais e afetivas, a rede de desafetos que atravessa essas famílias e uma luta constante para se livrar dessa situação.
No Avesso, Jeferson menciona a passividade de Henrique aprendida desde a mais tenra infância, por conta dos conselhos da mãe sobre como se comportar: não falar alto, não se destacar na frente dos brancos, não correr, jamais andar sem identificação, quando abordado pela polícia, não fazer movimentos bruscos. Essas frases jamais fizeram parte do meu cotidiano, nem dos meus amigos de infância. E é isso que temos de entender, absorver e alterar no nosso comportamento, porque só com essa consciência é que podemos modificar a realidade.
No romance de 2020, ora concorrendo ao prêmio Jabuti, todas essas questões são levantadas. Atravessado pela filosofia e pela psicanálise, sem deixar de lado a riqueza narrativa, o texto vai nos comovendo, revoltando e esclarecendo. A leitura é simplesmente imprescindível.