Li três livros muito bons recentemente: Torto Arado, O Avesso da Pele e Campo Geral. É muito interessante tentar descobrir a intertextualidade entre épocas e realidades tão diversas.
Torto Arado de Itamar Vieira Junior
Enquanto o primeiro traz uma mesma história contada de três pontos de vista diferentes, mas narrada pelo lado de dentro das comunidades quilombolas da Chapada Diamantina, o segundo trata da realidade das pessoas negras no Rio Grande do Sul. Por fim, o clássico de Rosa conta a história pelo ponto de vista de um menino.
Torto Arado
Torto Arado ganhou prêmios merecidos. A narrativa é contundente e nos faz enxergar o quanto aquela gente sofre, mas ao mesmo tempo consegue achar tempo para ser alegre, para os folguedos, para as alegrias e para uma religião peculiar. Acompanhamos aquela história com avidez, mas nada nos prepara para o terceiro capítulo. O encerramento é de surpreendente beleza e lirismo.
Avesso da Pele
O Avesso da Pele é um soco no estômago. Cada dia mais acompanhamos as denúncias de racismo pela polícia, a diferença de tratamento. Recentemente dois homens negros foram mortos por traficantes após serem entregues por vigias de um supermercado soteropolitano. O delito: furtar carne; por outro lado, na mesma Salvador, uma branca entrou numa delicatessen, furtou um queijo caro e saiu como se nada estivesse acontecendo. – George Floyd, Evaldo Rosa, João Alberto Silveira, só para falar dos casos mais recentes e escandalosos estão entre os muitos abusos diários. No livro, Jefferson Tenório nos relata a batalha diária dos jovens negros contra o preconceito e o racismo entranhado em nossa sociedade. São suspeitos o tempo todo, vivem com medo e saem de casa preparados para as estapafúrdias abordagens policiais. Não dá para uma pessoa como eu, branco, burguês, imaginar o que eles passam diariamente, mas dá para ter um pequeno vislumbre da situação da maioria da população.
Campo Geral
Por fim, Campo Geral conta, pelos olhos do famoso Miguilim, as desventuras de uma família pobre do interior de Minas Gerais na primeira metade do séc. XX. Guimarães Rosa é um primor na literatura. Fazia tempo que eu não chorava lendo um livro e uma das passagens é tão emocionante que foi impossível não verter lágrimas. Também é impossível não sentir um bafo de Dostoiévski durante a história, porque os questionamentos do menino estão próximos dos de Raskolnikoff, mas traduzidos para o interior de Minas Gerais. A pobreza geral dos personagens é descrita com o lirismo próprio de Rosa. Certamente ele inventou as palavras, ou as colheu da boca de tantos interlocutores ao longo de suas jornadas pelos Gerais.
Os três livros nos transportam de ambientes de segurança para o imponderável da vida. No primeiro, a tragédia de perder a língua e cortar momentaneamente a comunicação de uma criança com os pais dá início à contação de uma história dramática e cotidiana dos quilombolas da região interiorana da Bahia. Impossibilidade de construção de residências de alvenaria, trabalho em regime de semiescravidão, latifúndios improdutivos, proprietários exploradores.
No segundo, a tragédia das pessoas que, fugindo dessa realidade, migraram para as periferias das cidades e, por conta da cor da pele, se viram para sempre na condição de suspeitos e no terceiro, a visão do homem branco e burguês romantizando o interior como um lugar que, apesar da pobreza, é lugar de dramas humanos tão contundentes quanto os urbanos.
A diplomacia de Guimarães Rosa
Chama a atenção a diferença de tratamento dos dois primeiros romances, escritos por gente que vive em primeira pessoa os dramas descritos e o modo de contar de quem é espectador e tenta se colocar na pele do protagonista. Itamar e Jefferson vivem as realidades que descrevem, enquanto Rosa era um diplomata. Sempre afeito a ambientes sofisticados (aqui na acepção mais grega da palavra), que viajava pelos interiorzão do Brasil buscando histórias boas de se contar.
Ler Rosa com olhos contemporâneos, depois de passar pelos outros dois livros, abre compreensões bastante inusitadas. No meu caso, consegui enxergar a luta de classes subjacente e a questão racial, que também está ali, mas escamoteada. De toda forma, o drama da família de Miguilim é o de muitas famílias brasileiras pobres até hoje. Seja no campo, seja na cidade, mas nos dá uma esperança, porque certamente andamos alguns passos na direção de compreender que as coisas podem mudar e, eventualmente, melhoram a situação dos menos favorecidos.
É claro que a história não é uma linha reta. Nada é. Às vezes os movimentos são pendulares, às vezes helicoidais, às vezes espirais afunilados, mas nada é direto. Neste momento, vivemos um retorno aos tempos mais sombrios de ditaduras e opressões, mas isso também passará. Por mais pessimista que eu seja, não dá pra ficar na reclamação o tempo todo, e a arte nos liberta dessa âncora da realidade. A literatura é uma das artes que mais me encanta, pelas razões que discorri acima: me transporta para lugares, situações, sentimentos e sensações intensas.
Uma resposta
Muito bom!