LITERATURA

a literatura como fuga da realidade

Em menos de 15 dias li 4 livros sobre a morte. Três de Patrícia Melo e um do Jorge Amado. Todo mundo que me conhece e sabe o que eu gosto de escrever dramaturgicamente, seja em improvisações nas aulas de teatro ou tentativas de peças de teatro ou roteiros fadados às gavetas, sabe que os temas da morte e do assassinato me rondam. Talvez porque tenha lido muitos livros de Agatha Christie quando era jovem, e tê-los amado tanto, esse assunto sempre me ronda. Há ainda o fato de eu lidar muito bem com a finitude. Não temo a morte, o fato em si mesmo. Algumas formas de morrer de fato me apavoram, mas estar diante do inevitável não me angustia. Todos os dias da minha vida eu me levanto e me pergunto se eu posso morrer hoje, se eu morrer hoje, estarei em paz com a minha consciência? Usualmente a resposta é positiva.

Os livros da Patrícia foram os seguintes: Mulheres Empilhadas, Gog Magog e Ladrão de Cadáveres. O primeiro é um soco! Uma porrada! Questiona o morticínio de mulheres por seus homens, por companheiros ou familiares do ponto de vista de uma advogada enviada ao Acre para acompanhar um mutirão de julgamentos de mortes de mulheres. O romance já começa com uma cena de violência chocante, mas infelizmente cada dia mais comum, e segue por uma trilha de recordações, ayahuasca, delírios e uma realidade cada vez mais dura, à medida que investiga o assassinato de uma índia adolescente por um grupo de rapazes da classe dominante acreana. Nada disso é revelador, porque está tudo no início do livro. As reviravoltas e trilhas do romance são muito surpreendentes e fascinantes.

Contudo, somos chamados a responder uma questão para a qual me alertou minha amiga Juliana Ludmer – Por que nos matam? Como todo bom livro, a questão é posta, mas não totalmente solucionada. Já chegou a ser até notícia o algoritmo do buscador Google: morta por e morto por. Enquanto os homens são mortos em guerras, por drogas, pela polícia, as mulheres o são por seus maridos, pais, irmãos, namorados. Sempre alguém próximo. E ainda sou confrontado com a resposta de quem ainda não se acordou para o morticínio covarde das mulheres: mas todo mundo morre, morrem brancos, pretos, homens, mulheres, gays, travestis, transexuais a todo momento. As mulheres também vão nesse embrulho aí.

A questão é que mulheres são mortas por alguém que se considera DONO delas e, usualmente, por terem “transgredido” uma lei não escrita, algum código de conduta imaginado por esses donos. O pai que não aceita uma transa ou um namoro, o irmão que se considera desonrado, um namorado ou marido que não aceita o término da relação. E são mortas pelo simples fato de serem.

Nós homens precisamos mudar essa forma de pensar. A frase icônica da liberdade sexual, “ninguém é de ninguém” revela uma verdade ainda mais abrangente. Não pode haver relação de posse e propriedade entre os seres, especialmente os humanos. As relações se estabelecem e se desfazem ao longo da vida de forma mais ou menos espontânea e dessa forma deveriam ser encaradas. A ideia da monogamia, da fidelidade sexual, são criações sociais impostas para fins de controle econômico e nada têm a ver com os desejos e pulsões. Eu não conheço ninguém que jamais tenha tido desejos sexuais fora da relação ou do casamento. Claro que há uma barreira psíquica importante, socialmente imposta, impedindo a consumação dos desejos, mas todo mundo, num momento ou outro da relação, sentiu desejos fora dela. Isso não dá ao homem o direito de tirar a vida da companheira, namorada, noiva, esposa. Mesmo que o ato se consuma. Aliás, nada dá esse direito a quem quer que seja. A única situação em que matar alguém pode ser aceitável é quando o morto estava tentando matar outra pessoa. A legítima defesa da própria vida ou da vida de outrem é excludente de ilicitude, no linguajar do direito, o que significa que é a única desculpa para matar.

Logo depois de Mulheres Empilhadas, emendei em “A Morte e a Morte de Quincas Berro d’Água”, magnífica novela de Jorge Amado. Embora o tema ainda seja a morte (repetida nos demais romances), neste caso há uma leveza. Primeiro porque Quincas morreu, ao que se pode depreender da leitura, de causas naturais. Foi encontrado no leito, de manhã, morto, com um sorriso debochado nos lábios. A partir desse fato, somos apresentados a um sujeito que, num determinado momento da vida, se libertou de convenções sociais para viver uma vida de libertinagens e deboches. No desenrolar do velório improvisado, vamos descobrindo o contraste entre duas faces de Salvador, a dos burgueses e a dos malandros. Quincas ainda se diverte terrivelmente, junto a parceiros de farra, enquanto a família se amesquinha em questões de dinheiro e convenções. Divertidamente macabro, ou macabramente divertido. Vale demais a revisitação de Jorge por isso.

O outro romance da Patrícia, encarrilhado, foi Gog Magog. O título, misterioso para mim, me atraiu. Está longe do brilhantismo e da força do Mulheres… mas é interessante. Tem um quê do Dostoievski em Crime e Castigo, mas dura um décimo do grande clássico (do qual tenho reservas). A história expõe um professor preso a uma vida medíocre, num bairro medíocre, que talvez sofra de uma aflição auditiva exacerbada. Comete um crime e tenta, por algum tempo, se livrar da culpa e das consequências. Fui pesquisar gog magog na Wikipédia e encontrei isso: https://pt.wikipedia.org/wiki/Gogue_e_Magogue . Não sei se entendi bem, mas parece que Patrícia usa a imagem islâmica do mito.

Por fim, terminei hoje Ladrão de Cadáveres. Sabe aquele tipo de romance que você não gosta muito, mas mesmo assim não consegue largar? É desse tipo. A história é de anti-herói. O personagem principal é meio pusilânime, meio bacana, meio sacana, ou seja, bem brasileiro típico. Tem um golpe de sorte, mas a vida só se resolve nas últimas páginas do romance. Até lá, acompanhamos as desventuras do narrador, cujo nome não me lembro de ter sido mencionado, desde o infortúnio de ter causado o suicídio de uma empregada de telemarketing a si subordinado, sua fuga para Corumbá e o achamento de um cadáver (sei que achamento não é palavra já existente, mas gosto do efeito) que vai transformar sua vida de forma bem inesperada. O truque de Patrícia é manter o fio da narrativa no suspense. Sempre achamos que o narrador será pego em seguida. Me lembrei de minha amiga Denise Moraes. Lemos “O Assassinato de Roger Ackroyd” da Agatha Christie mais ou menos ao mesmo tempo, mas nossas impressões foram muito diferentes. Quando falamos sobre o livro, ela começou dizendo que era seu preferido, porque ao fim o assassino é o leitor. Eu fiquei intrigado com isso e fui reler. Eu não tenho essa impressão. É como neste livro. Narrações em primeira pessoa sempre me remetem a um interlocutor que conta a própria história, enquanto Denise se sente na pele do narrador. Ah, as maravilhas da literatura! Neste livro da Patrícia, o mesmo ocorre. Como a narração é em primeira pessoa, alguns leitores podem ter a impressão de que estão vivendo por si mesmos a aventura contada. Eu sempre acho que estou falando com um amigo.

Este foi mais ou menos o resumo das duas semanas entre o carnaval e hoje.

O que me distanciou e me fez sobreviver à política. Foram muitos fatos estranhos, ligações que poderiam ser devastadoras ao desgoverno, caso estivéssemos em pleno Estado Democrático de Direito, mas que seguem sendo ignoradas, pois interessam aos reais fatores de poder. Veremos até quando a burguesia brasileira vai suportar a recessão, a crise e o arroxo. Talvez já tenham se esquecido dos péssimos anos 1980, hiperinflação, pacotes econômicos desastrosos, devastação por todo lado e, o pior, a fome grassando. Essa necropolítica neoliberal tem de acabar, ou morreremos muitos de fome.

P. S.: Mal acabei de postar, deparei com a seguinte matéria no UOL

https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2020/03/06/ela-perdeu-dentes-por-violencia-domestica-mas-ong-reconstruiu-seu-sorriso.htm

Não existe aleatoriedade nesse assunto.

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