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RELIGIÃO

Já escrevi aqui sobre sincretismos e a importância que teve para a manutenção das tradições religiosas dos escravizados. Yansã não é Santa Bárbara, como já foi várias vezes mencionado em diversos fóruns e discussões. Mas o pior sincretismo é de Exu com o diabo.

Isso também já foi muito mencionado. A questão é que Exu é o mensageiro entre este mundo e o Orum, onde vivem os Orixás, é ele quem se encarrega de levar nossas dores e agradecimentos ao Orum e trazer de volta as respostas dadas pelos deuses Yorubá. Nas lendas contadas sobre ele, aprendemos o quão sutil e astuto ele é, e o quanto se aproveita disso para apimentar as relações humanas. Está entre nós, é o guardião das encruzilhadas e dos mercados.

Sobre ele se diz que matou um pássaro ontem com uma pedra que só atirou hoje; que carrega óleo em peneira, que sua cabeça é pontura e afiada como uma faca, nela nada se assenta, porque nada pode estar preso ao Ori de Exu.

Pierre Verger, no livro Lendas Africanas dos Orixás, nos conta a seguinte história sobre esse Orixá:

“Conta-se que Aluman estava desesperado com uma grande seca.

Seus campos estavam áridos, a chuva não caía.

As rãs choravam de tanta sede e os rios estavam cobertos de folhas mortas, caídas das árvores.

Nenhum orixá invocado escutou suas queixas e gemidos.

Aluman decidiu, então, oferecer a Exu grandes pedaços de carne de bode.

Exu comeu com apetite desta excelente oferenda.

Só que Aluman havia temperado a carne com um molho muito apimentado.

Exu teve sede.

Uma sede tão grande que toda a água de todas as jarras que ele tinha em casa, e que tinham, em suas casas, os vizinhos, não foi suficiente para matar sua sede!

Exu foi à torneira da chuva e abriu-a sem pena.

A chuva caiu.

Ela caiu de dia, ela caiu de noite.

Ela caiu no dia seguinte e no dia de depois, sem parar.

Os campos de Aluman tornaram-se verdes.

Todos os vizinhos de Aluman cantaram sua glória:

Joro, jara, joro Aluman,

Dono dos dendezeiros cujos cachos são abundantes!

Joro, jara, joro Aluman,

Dono dos campos de milho, cujas espigas são pesadas!

Joro, jara, joro Aluman

Dono dos campos de feijão, inhame e mandioca!

E as rãzinhas gargarejavam e coaxavam, e o rio corria velozmente para não transbordar!

Aluman, reconhecido, ofereceu a Exu carne de bode com o tempero no ponto certo da pimenta.

Havia chovido bastante. Mais, seria desastroso!

Pois, em todas as coisas, o demais é inimigo do bom.

(VERGER – 1997 – Ed. Corrupio)

Além disso, Exu é dono da fertilidade e seu símbolo mais potente, freqüentemente encontrado na entrada das feiras e mercados, é um pênis ereto, o Ocane Exu. Talvez por isso os cristãos tenham-no associado ao diabo, por esse caráter de liberdade sexual, de gozo e de fruição dos prazeres terrenos, uma vez que os devotos do deus hebreu são reprimidos sexualmente, têm a noção equivocada de que sexo é feio, sujo, pecaminoso e, o pior, atividade demoníaca.

Na minha visão de mundo, nada há de mais errado do que isso. É pelo coito que os animais são capazes de gerar vidas novas, é por meio do intercurso que o prazer e as angústias são liberadas. Quem tem orgasmos livres e intensos, quem goza gostoso, sente uma alegria e um amor pela vida transformadores. Essa energia é benéfica e, se reprimida, causa destemperos hormonais e de humor e histerias, quando não coisa pior.

Houve no twitter recentemente um top trendings sobre essa demonização de Exu, mas nós, devotos das religiões brasileiras trazidas pelos sacerdotes covardemente escravizados pelos brancos europeus, temos obrigação de combater essa mentira, mais uma. Na nossa religião, o demônio nem existe, como essa concepção maniqueísta de bem e mal. Para nós, as energias da terra têm função agregadora e desagregadora, são dinâmicas e buscam o equilíbrio, mas não o equilíbrio eterno. As coisas mudam, o tempo traz transformações, o que hoje achamos decadente, apodrecido, serve para alimentar outras formas de vida e de atitude perante o mundo.

Talvez o pior defeito dos que seguem a bíblia seja acreditar numa verdade imutável, mesmo tendo provas inequívocas de que o que hoje é verdade, amanhã será questionado e outra verdade aparecerá. É da natureza do planeta essa constante mutação, a constante mudança. Estamos viajando em torno do Sol a uma velocidade de 108.000 km/h – CENTO E OITO MIL QUILÔMETROS POR HORA. E em torno do nosso eixo (da Terra), a 1.600 km/h – MIL E SEISCENTOS QUILÔMETROS POR HORA) – na região do Equador. Já imaginaram o que é isso? Às vezes sinto vertigem. Exu é o Orixá da velocidade, da transformação, do “tudo muda”, mas nada tem a ver com o que os cristãos chamam de diabo, que é a concentração do Mal, em oposição a Javé, que é a concentração do Bem.

Exijamos respeito às nossas tradições!

Uma resposta

  1. Maravilhosa essa matéria amigo! Esse assunto é extremamente necessário pra que a nova geração venha com um pensamento religioso mais igualitário, respeito. PARABÉNS! ADOREI.

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