O Brasil está vivendo um momento muito peculiar. Me vem sempre à mente a frase de Edward Bond numa peça dirigida por Daniel Belmonte: “vivemos em tempos conturbados ou os achamos os tempos conturbados porque o estamos vivendo?” Eu nasci em 1965, bem no comecinho do regime inaugurado por um golpe militar dado no primeiro de abril do ano anterior. Nasci em Goiânia, interiorzão do Brasil, num tempo em que a energia elétrica mal chegava àqueles rincões. Meu pai motorista e minha mãe professora primária. Eu e minha irmã mais nova fomos criados naqueles tempos também conturbados e obscuros.
Vivemos em Goiânia até 1977. Estudamos no melhor colégio particular da cidade, porque a reforma educacional promovida por Jarbas Passarinho já havia degringolado com o ensino público. O Colégio Marista de Goiânia tinha a fama de ser rígido e meus pais fizeram muitos sacrifícios para estudarmos lá. Como contrapartida, nós, os pobres, tínhamos de ser os melhores da turma. Havia um sistema que premiava os alunos da série que se destacassem pelas notas. Era minha obrigação e de minha irmã recebermos bimestralmente o Quadro de Honra. Um pedacinho de cartolina impresso em amarelo. Lógico que não me lembro dos dizeres, mas certificava a excelência daquele aluno. Assim passei eu, do segundo ano até a quinta série. Sim. No ano em que eu ia entrar no ginásio, uma reforma da educação foi aprovada e deixou de existir primário e ginásio. Não fiz teste de admissão (minha prima um ano mais velha que eu, no ano anterior, passou pelo teste), então eu passei do quarto ano primário para a quinta série ginasial.
Foi o ano em que comecei a estudar de manhã e representou uma grande reviravolta na minha vida pessoal. à tarde eu ficava em casa sozinho e tinha muita preguiça de estudar. Fracassei terrivelmente em matemática, quase reprovei de ano. Mas foi bem passageira essa fase, porque no ano seguinte, nos mudamos para o interior do interior. Fomos para Jaraguá. O Brasil estava vivendo também tempos economicamente estranhos. Mas para a minha família foi uma época de bonança. Meu pai havia se associado ao irmão de minha mãe para abrirem um posto de combustíveis, na praça central, em frente à igreja Matriz de Nossa Senhora da Penha.
Eu atravessava uma adolescência sem muitos sobressaltos, mas o País estava ainda complicado. A presidência da república ainda era exercida por um general de 4 estrelas, o alemão. O divórcio recém aprovado era assunto de algumas rodas como ameaça à família, célula matriz da sociedade (hahaha) e todos se admiravam da coragem do Geisel por ter sancionado a lei. Golbery atuava nas sombras para devolver o regime aos civis, no que era combatido por uma galera mais encarniçada e sádica, que aprovava os métodos obscurantistas de sequestrar, torturar e matar opositores. Mas a sucessão para 1979 estava complexa. Li um livro muito interessante sobre esse assunto, chamado O Jogo da Gata Parida. Não me lembro de detalhes, mas Luiz Gutemberg, um jornalista de política importante da época, conta como o João Figueiredo, o próximo presidente, foi escolhido, ou melhor, parido, para encher uma lacuna de poder.
João mostrou-se um chucro. Não gostava de gente. Chegou a admitir que preferia cheiro de cavalos a cheiro de povo. Boquirroto, declarou na TV que jamais seria capaz de viver com um salário mínimo. Enfim. Foi o último presidente-general, ficou no poder até 1985 e inaugurou a fase da hiperinflação. Passou a faixa ao primeiro civil depois de 21 anos, o José Sarney. Há dúvidas até hoje sobre essa sucessão, porque o civil eleito, na verdade, era uma raposa política. Tancredo Neves, político mineiro tradicional, envolvido na vida pública desde os tempos de Getúlio Vargas, foi o consenso para a transição. Só que morreu na véspera. Uma morte suspeitíssima. O vice, Sarney, era da Arena, que à época já se chamava PDS – Partido Democrático Social, e havia participado da sustentação dos militares antes.
Como eu disse antes, em meados da década de oitenta entrávamos na pior fase econômica que enfrentamos, a hiperinflação. A moeda trocou de nome várias vezes na época e a cada vez, perdia 3 zeros. Vários planos econômicos, várias tentativas e nada funcionava.
Quanto a mim, depois de ser aprovado num vestibular para engenharia elétrica na Universidade Federal de Goiás e atravessado uma crise pessoal e familiar, tinha sido aprovado em um concurso público para agente administrativo em Brasília. 1985. O ano em que me mudei para a cidade que mais amei morar, antes do Rio de Janeiro. Para mim foi uma libertação. Eu detestava Goiânia e minha relação com meu pai estava cada dia mais complicada. Eu gostava de fazer teatro, havia abandonado a engenharia para fazer jornalismo, estava ficando maior de idade e queria liberdade. A consciência da minha homossexualidade se tornava cada vez mais clara e esse aspecto da minha vida, com certeza, azedava muito a relação. Meu pai era muito homofóbico.
A libertação pessoal estava próxima, mas o Brasil estava confuso. O dinheiro não valia nada, as transações comerciais estavam dolarizadas, desemprego altíssimo, ameaça de retorno dos militares ao poder, enfim, uma política de terra arrasada. Sarney tentou conter a inflação, mas nenhum de seus planos funcionou. Nesse ínterim, elegemos uma Assembleia Nacional Constituinte e em 5 de outubro de 1988, inauguramos uma nova ordem constitucional. Na minha visão, só aí é que o governo civil de fato se inicia. Eleição direta para todos os cargos majoritários e legislativos, organização estatal em três esferas de governo, União, Estados e Municípios, muita liberdade, proibição de censura, direito de associação, habeas corpus, habeas data, enfim, a promessa de melhores tempos.
No ano seguinte tivemos eleições diretas para presidente. Vários candidatos, de várias cores políticas. Tínhamos Lula, Collor, Aureliano Chaves, Brizola, Ronaldo Caiado, Paulo Maluf, Afif Domingos, Gabeira, Mário Covas, Roberto Freire, até o sr. constituinte, Ulysses Guimarães, foram os candidatos mais notáveis. Vários deles permaneceram na política por muito tempo e alguns ainda estão por aí. Teve também o excêntrico Eneas Carneiro. E foi uma eleição em dois turnos. Para o segundo turno, ficaram Collor e Lula. O primeiro um playboy no melhor estilo alagoano. Vinha de um discurso moralista e contra a corrupção (como aquele adágio: quem não conhece a própria história tende a repeti-la), era branco, rico, dono de emissora de TV e vindo do tradicional coronelismo nordestino. Venceu Lula, operário, presidente do recém criado Partido dos Trabalhadores, sindicalista de respeito entre as esquerdas. Eu era simpatizante deste partido de andar de broche e adesivos.
A economia ainda estava em pandarecos e Collor reuniu uma equipe de economistas, liderada por Zélia Cardoso de Mello (não eram parentes), com a promessa de um tiro contra o tigre da inflação. Naquele tempo a eleição ocorria em novembro e a posse do presidente era no dia 15 de março. Não sei a razão para a data da posse, mas a eleição em 15 de novembro era o marco inaugural da República.
Eu já trabalhava há algum tempo na Imprensa Nacional – na época Departamento de Imprensa Nacional/DIN – e me lembro como se tivesse acontecido ontem a edição do dia 16 de março de 1990, o dia seguinte da posse, com a medida provisória e os decretos da reorganização do Estado e da economia. A gangue assaltou as poupanças. Bloqueou dinheiro, rapelou os bancos e nós acordamos na miséria. Bem, eu, propriamente, não, porque não tinha dinheiro guardado, mas papai quase infartou. Sempre teve reserva e poupança.
Ou seja, saímos da ditadura militar para a instabilidade econômica e atravessamos o roubo governamental. Eram jornalistas da Globo na época a Lilian Witte Fibe e o Joelmir Betting. As caras deles lendo o Diário Oficial e tentando entender o que estava acontecendo era hilariante, mas ao mesmo tempo deseperadora.
Collor durou dois anos na presidência e, depois da reforma na casa da Dinda, executada com sobras de campanha, delação de seu irmão Pedro e outras confusões, acabou apeado do poder. Também é marcante a cara dele e da Rosane Collor deixando o Palácio do Planalto pela porta dos fundos. Teve os direitos políticos suspensos e foi para Miami num autoexílio. Era rico e por isso nada afetou sua vida econômica e moral. Hoje é senador da república pelo Alagoas.
Com a renúncia de Collor, assumiu Itamar Franco, o vice e um pouco de paz econômica se avizinhava. Um plano, o Real, foi elaborado pela equipe econômica e depois de quase 10 anos de loucura inflacionária, entramos numa fase mais calma. Pelo que me lembro, para a classe média, foi um tempo de bonança. Os pobres permaneceram se ferrando como sempre, porque o andar de cima do poder jamais pensou neles, não havia política pública para atender as pessoas que morriam de fome no Brasil. E é necessário lembrar sempre que em 2002, cinco crianças morriam de fome no Nordeste do Brasil por dia! Do Brasil! Por dia!
Aí o Lula finalmente conseguiu vencer uma eleição. Foi, na minha modesta opinião, o melhor presidente deste País. Dos tempos em que estou vivo, não tenho dúvida disso. O período dele teve defeitos graves, mas qual não tem? De toda sorte, a economia mais estabilizada por conta das bases plantadas pelo plano real facilitava o avanço de políticas sociais mais agressivas. O Brasil saiu do mapa da fome, o salário mínimo de fato ganhou mais poder aquisitivo e o velho sapo barbudo saiu do governo com 85% de aprovação.
Por conta desse índice de aprovação, o PT emplacou a Dilma como presidenta. A primeira mulher a governar o País. Com menos simpatia, menos traquejo e capital político inexistente, conseguiu atravessar o primeiro mandato, mas, ao contrariar a turba parlamentar e as ambições presidenciais do mineirinho e do mercado, foi apeada do poder por um golpe salafrário do vice presidente.
Chegamos então aos tempos atuais. Uma distopia. Um presidente que sempre pregou o ódio a todos os opositores, a eliminação das diferenças. Acho que o que nos trouxe a este estado de coisas foi o ódio da classe média brasileira pela ascensão social dos pobres. Há uma coisa coronelista e antirrepublicana na maioria dos brasileiros.
Acho por fim que tempos conturbados sempre houve. Vamos atravessar mais este. Espero que com mais brevidade.