Sexta-feira passada assisti novamente a Amarcord e E La Nave Va. É muito importante, de vez em quando, de vez em sempre, fugir da forma narrativa e da perfeição de atuação naturalista da indústria cinematográfica estadunidense.
Amarcord é de 1973 e conta a história de uma família, ao longo de um ano, numa pequena vila italiana. É uma cidade à beira mar, com tipos incríveis. Uma escola rígida, a moça “malfalada”, o padre, as três mocinhas elegantes, o vendedor de bugigangas e comida num carrinho, o historiador, a tabaqueira, os garotos da escola. Interessante notar que as garotas, além de poucas, não são contadas na trama. Tudo isso perpassado por uma sexualidade reprimida, mas transbordante por todos os poros.
O tempo é o pré segunda guerra mundial. Em plena adoração pelo Duce. Segundo os membros do Partido, a vila tem 98% de adesão ao fascismo e aos ideais italianos. As estações vão se sucedendo e as crônicas enfileiradas como um colar de contas. É agradável ver os exageros fellinianos, quase surreais, levados em cores vibrantes à tela. As histórias beiram o realismo fantástico.
E La Nave Vá, ao contrário, tem uma narrativa mais linear. Conta a história do funeral de Edmea Tetua. Esta personagem fora uma soprano milagrosa, daquelas vozes únicas em sua geração. Originária de uma pequena ilha, tinha por último desejo que suas cinzas fossem espalhadas no mar próximo a ela. O início do filme é como se fora um documentário. Como a cena se dá em 1914, o filme é mudo, num tom sépia. Com a chegada das cinzas, Fellini faz uma magistral transição para o filme colorido e falado.
O transatlântico é luxuosíssimo. Há um príncipe austríaco, acompanhado da irmã cega magistralmente interpretada por Pinah Bausch. Tudo exala riqueza e poder. Mas um pouco de loucura não podia faltar. O filme foi lançado 10 anos depois de Amarcord, mas ainda trata, subliminarmente, das estruturas de poder.
No meio do caminho, refugiados sérvios são resgatados de um naufrágio. O contraste é gritante. A comitiva austríaca entra em pânico, pela segurança do príncipe, mas o capitão do navio se recusa a descumprir as regras de marinha e continua acolhendo os náufragos, até que um navio militar austríaco aborda o transatlântico e os reclama, alegando que são terroristas.
A narrativa, agora, se assemelha à Ópera. Há árias, duetos, coros, tudo muito bem ancorado na história. Tudo muito sensível e emocionante.
Foi excelente ter revisto esses filmes durante este período tão sombrio.