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Em entrevista publicada no jornal O Globo de 25/11/2020, na página 17, caderno de sociedade, Wilson Gomes, filósofo e professor da Universidade Federal da Bahia, me chamou a atenção para um conceito muito interessante e novo para mim: discriminação semiótica. Transcrevo o trecho da entrevista:

O que significa o termo discriminação semiótica?

Estamos o tempo todo tentando entender o mundo, as pessoas. Para isso, lemos os signos que emitem. Isso é o que se poderia chamar de semiótica ou hermenêutica sociais. Como não dá para, a cada nova pessoa, coletar todos os dados possíveis e, por ensaio e erro, tentar decifrá-la, usamos as experiências acumuladas e as codificações que criamos a partir delas ou que nos foram ensinadas. É por essa porta que entra o preconceito social ou pessoal. Aprendemos socialmente, por exemplo, que os pobres são mais vulneráveis, defendem-se menos da agressividade e da humilhação. Então nos comportamos de acordo.

E como isso se traduz na sociedade?

Desse ponto de vista, é uma enorme desvantagem social ser pobre, como ser de qualquer minoria. Se for pobre, não seja preto, que aí são duas vulnerabilidades juntas. Se for gay, não pareça da periferia. Pois assim que o segurança da loja, o policial, o fortão da boate, te colocar nas caixinhas de pobre e da periferia, a atitude deles mudará: de cuidadosos, prudentes e até servis com quem parece poder humilhá-los, passam a se sentir autorizados ao esculacho, à ofensa, à humilhação. E, a depender das circunstâncias, autorizados ao chute, ao joelho no pescoço, ao estrangulamento, ao estupro. É assim que funciona o invisível e frequentemente indetectável racismo semiótico.” (O Globo – 25/11/2020, p. 17)

Esse texto teve um impacto enorme sobre mim. Eu estudei semiótica ainda na década de 80, quando fazia uma faculdade meia boca de jornalismo no CEUB, em Brasília. O estudo dos signos, o que eles representam no nosso imaginário, como eles comunicam e as influências que isso tem no nosso comportamento é um dos aspectos mais importantes da faculdade de comunicação e nem sempre é tão bem esclarecido. Eu mesmo passei anos só com os conceitos básicos e só depois de reler pela terceira vez o romance O Nome da Rosa do Umberto Eco (semiólogo de primeiríssima grandeza), as coisas entraram em seus lugares.

E semiótica é a forma pela qual tudo nos atinge. Tudo são símbolos e signos, inclusive este texto. O que o filósofo nos alerta é para a conscientização do quanto a linguagem e a simbologia da opressão são determinantes no nosso comportamento social.

Quando se trata de relações interpessoais com conhecidos, sabemos o histórico, temos ciência de quem são, onde vivem, um pouco da história e da trajetória de vida e, mesmo que não compreendamos profundamente os sofrimentos, o trato será baseado também em signos já introjetados, não só na aparência e na superfície. No entanto, ao lidar socialmente com desconhecidos (prática mais que habitual nas grandes cidades), o tratamento dispensado será feito com base somente na primeira impressão.

É o que acontece ao entrarmos numa loja mais metida a sebo com roupas baratas. Atendentes mal nos olham, quando o fazem é com um certo desapreço. Mas quem sabe ali não estaria a venda do mês. E também é assim com a população negra. A tecla já está quase furada do tanto que falamos nisso, mas parece não ser suficiente. Negros ainda são seguidos em corredores de loja, ainda são vistos como suspeitos em qualquer situação. Passei a notar, ao entrar em alguns ambientes, quantos negros estão freqüentando o lugar. Na totalidade dos lugares na Zona Sul do Rio de Janeiro, a presença do negro se restringe às funções laborais. Nos bares, restaurantes, lojas, cinemas, a presença de pessoas negras é irrisória, quando não inexistente.

É sobre isso que nos alerta o professor Wilson Gomes. Esse entendimento de sociedade. Semiologia é só uma palavra complicada e acadêmica para definir a compreensão do mundo a partir dos sinais que emitimos e recebemos. Precisamos, com urgência, mudar a chave de percepção social desses sinais.

As políticas públicas inclusivas lançadas nos anos em que o Partido dos Trabalhadores esteve no poder central foram determinantes para reacender essa chama, que nos liga diretamente a pessoas como Lélia Gonzales, Milton Santos, Angela Davis e outros tantos. A história, contudo, não é uma seta lançada para o futuro. Talvez seja mais parecida com um trecho de quadro de Van Gogh, com reviravoltas e redemoinhos. A esse movimento de conscientização e libertação da população negra se insurgem os detentores de privilégios sociais, que se sentem ameaçados. É o momento em que vivemos.

A minha esperança é que a próxima volta nos leve mais adiante nessa compreensão da igualdade entre todos os seres humanos.

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