Para surpresa de ninguém, vinícolas do Rio Grande do Sul, na região de Bento Gonçalves, se utilizavam de mão de obra de pessoas em condição análoga à de escravo.

A história da humanidade considerou, desde sempre, que parte das pessoas deve servir outra parte. Sabemos que essa ideia é antiqüíssima e está presente em várias das culturas que consideramos como fundantes dos povos contemporâneos. No entanto, só com o advento de Cristo, quer ele tenha existido de fato, quer os relatos sobre ele que sobreviveram até a contemporaneidade sejam ficção bem elaborada, a noção de que todos os seres humanos são iguais começou a brotar.
Igualdade como novidade
Mesmo assim, com a ascensão do cristianismo a religião oficial do Império Romano, tanto do oriente quanto do ocidente, essa noção e igualdade voltou a ser abandonada e, com a queda do Império Romano do Ocidente, o feudalismo trouxe ainda mais opressão. Isto porque a palavra escravo foi substituída por servo, fâmulo, mas com o mesmo conteúdo opressor.
Com o advento das circum-navegações, e a invasão dos territórios que mais tarde formariam o grande continente americano, coincidindo um pouco com o iluminismo, a noção de igualdade entre os homens voltou a entrar na pauta dos filósofos europeus, mas talvez (não tenho informação certa com relação a isso) por conta do contato com culturas ameríndias, menos estratificadas.
Coincide com isso a escravização em massa de populações africanas, para serem mão-de-obra necessária à colonização do continente recém invadido. Também coincide com isso a noção de que os brancos europeus seriam mais “evoluídos” e o ápice da humanidade.
Descolonização e as novas perspectivas
Vendo com olhos atuais, depois de leitura de Jefferson Tenório, Ana Maria Gonçalves, Itamar Vieira Júnior e Paulina Chiziane, Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo, dentre outros, somos capazes de analisar esse fenômeno com um filtro diferente.
Não obstante toda essa elaboração histórico-cultural, o Planeta Terra ainda é contaminado pela ideologia escravocrata que, muito embora banida das legislações e não aceita entre os círculos civilizados, permeia o imaginário de todos, e, principalmente, de muitos dos empresários devotos do neoliberalismo.
Para além disso, está nas cabeças da classe média brasileira, que considera a empregada doméstica uma pessoa menos merecedora de direitos trabalhistas, por serem “da família”. Na verdade, os governos do PT, com duas ações reparatórias importantíssimas: a adoção de cotas para negros nas universidades e a proposição de Emenda Constitucional que estendeu às pessoas que trabalham no ambiente doméstico todas as proteções do Art. 7º da Constituição Federal.
Por conta disso, a classe média brasileira ficou profundamente mexida. Em primeiro lugar, teriam de pagar todos os direitos trabalhistas, elaborar contratos laborais etc. Em segundo, os filhos e as filhas desses trabalhadores poderiam freqüentar as universidades e, conseqüentemente, não necessitariam se submeter às aviltantes condições que a classe média brasileira, de forma geral, costumava dispensar a quem trabalhava para eles.
Mas qual não é a nossa surpresa quando nos deparamos, nesta semana, com a notícia de três grandes produtores de vinho e suco de uva em Bento Gonçalves se utilizavam de mão de obra em situação análoga à de escravos em sua linha de produção.

A conduta está abrangida pelos termos do art. 149 do Código Penal, que estabelece pena para quem submete trabalhadores a condição análoga à de escravo. Era o caso. Além de não obedecerem aos poucos artigos da Consolidação das Leis do Trabalho que restaram depois da reforma trabalhista colocada em vigor pelo governo do mordomo de vampiro, as vinícolas ainda submetiam os trabalhadores a castigos físicos.
Estamos há mais de 100 anos da abolição da escravidão pela Lei Áurea, mas os produtores, a burguesia, as elites ainda se sentem senhores escravocratas em pleno séc. XXI.

Em tempo: após a repercussão do caso, um vereador de Bento Gonçalves fez uma fala absolutamente execrável. Foi tão cruel, descabido e afrontoso na câmara de vereadores que o partido dele, o Republicanos, um dos mais retrógrados da extrema direita, ficou chocado e o expulsou.
A humanidade tem de se repensar.