Morte no Nilo foi adaptado de um romance homônimo de Agatha Christie e conta uma história de romance e traições, numa trama desvendada pelo indefectível Poirot.
Morte no Nilo começa com o casamento
O romance Morte no Nilo, confesso, foi o primeiro que li e descobri a trama bem antes da metade do livro. Normalmente eu não me ocupo de ficar tentando desvendar quem matou, por que matou, mas apenas vou lendo e, quando é bom, me surpreendendo. Mas fiquei curioso de ver a adaptação dirigida por Kenneth Brannagh, e ver como ele exporia os mistérios e as contradições internas do romance na telona.
DAS DIFICULDADE DE ADAPTAR
Literatura, desde sempre, é fonte de inspiração para as artes dramáticas, tanto para o teatro, quanto para cinema e televisão. O audiovisual, com certeza, com a facilidade dos truques de câmera e, mais recentemente, da computação gráfica, tem muito mais recursos para trazer toda a fantasia descrita nas obras literárias para o mundo imagético.
A despeito disso, é muito comum as adaptações serem frustrantes para quem ama ler. Infrutífera discussão. O romance e a ficção escrita, quando de muita qualidade, têm o poder de levar a nossa imaginação a lugares fabulosos. Mas cada imaginação, obviamente, é única e varia de acordo com as experiências sensórias vividas individualmente.
É importante saber que os cheiros, memórias e até sabores são trazidos à memória dos leitores, quando a descrição é muito competente. Para além disso, cada leitor considera esta ou aquela parte mais importante, mais significativa, mais impressionante, também dependendo do histórico emocional e psicanalítico de cada um.
Por essa razão, adaptar, assim como traduzir, é trair. Mesmo que o roteirista seja o próprio autor da ficção literária, o roteiro deve optar por passagens consideradas pelo adaptador mais significativas para a história a ser contada. Essa é a essência do drama (no sentido original do termo, ou seja: ação): cada cena deve integrar uma narrativa destinada a cumprir um objetivo para que a fatia de vida da personagem a ser contada faça um sentido.
Mesmo em escolas diferentes da realista e da naturalista, as cenas se sucedem para contar uma história e ela deve ser apreendida pelo espectador da melhor forma possível.
EU ESPERAVA MAIS DO FILME MORTE NO NILO
Para o caso de Morte no Nilo, para além das licenças poéticas muito necessárias à transliteração de uma linguagem para a outra, há invenções que, para quem é fã de Agatha, não fazem o menor sentido. Logo no início do filme, o roteirista inventa uma cena totalmente “tirada da cartola”, para justificar o eterno bigode do famoso detetive belga. Para além de desnecessária, a cena não aparece em nenhum dos livros da famosa inglesa. Para o caso, ela apenas conta do esmero e do cuidado de Hercule com o adereço capilar facial.
Mas ultrapassada essa cena, entramos no conteúdo do romance propriamente dito: a história de Linett Doyle (nèe Ridgeway). Uma linda e milionária aristocrata inglesa, cuja fortuna herdada do pai tem origem pouco lícita. Linett talarica a melhor amiga, se casa com o ex noivo desta em uma cerimônia num hotel elegante do Cairo. O romance tem muitos personagens e muitas nuances que permitem ao leitor duvidar de quem seria o verdadeiro culpado.
Diferente dos demais romances, nos quais o assassinato ocorre quase no início da trama, dando margem a uma série de equívocos até a solução do mistério, neste Agatha deixa o crime para o ponto de virada, o que é interessante.
Como eu disse antes, cada adaptador percebe a história de acordo com seus próprios filtros psicanalíticos e, por esta razão, escolhe esta ou aquela cena para jogar para a tela. Mas eu acho (e aí é achismo mesmo, não é baseado em nada que eu tenha conversado com meus colegas roteiristas ou estudiosos do tema) que inserir personagens inexistentes na trama original, ou alterar as relações entre os tipos escolhidos, é uma traição ainda maior.
ESCOLHAS EQUIVOCADAS
Algumas personagens são imprescindíveis para o romance. Um capitão, amigo de Poirot, que está na viagem em busca de um terrorista bolchevique, por exemplo, acaba sendo sumariamente eliminado. O famoso detetive, nos romances, sempre tem um ponto de apoio. O Dr. Hastings, na maioria das vezes, mas há outros e este romance é um dos casos.
Trocam o próprio bolchevique pela personagem da hilariante Jennifer Saunders (eterna Edina Monsoon de Absolutely Fabulous), uma madrinha da personagem principal, inexistente no original. A trama relativa à fraude que o escritório estadunidense encarregado dos negócios de Linett também passa quase desapercebida. Por fim, a relação da personagem de Annete Benning com o filho, vivido nas telas por Tom Batemann, ademais de ser imprecisa, é injustificada.
Kenneth também dá uma fisicalidade inexistente nos romances. Poirot jamais correria atrás de um bandido, mesmo tendo presenciado. O belga é notório por explorar apenas as pequenas células cinzentas de sua massa cefálica.
OS MÉRITOS DO FILME
Ultrapassadas todas essas questões, o filme, para quem não leu o romance, é um primor. Pois utilizam incríveis efeitos de pós produção, em razão dos quais somos transportados para um Egito já inexistente, de meados do Séc. XX, com tomadas panorâmicas lindíssimas.
Morte no Nilo
Os cenários luxuosíssimos, como devem ser, uma vez que se trata de uma história de milionários, são impecáveis. A luz, o figurino e a maquilagem são também precisos e estão totalmente a serviço da contagem da história.
Eu, particularmente, não gosto muito do Hercule Poirot do Kenneth, muito embora o considere um excelente ator. Devo dar, no entanto, o mérito. De Assassinato no Expresso Oriente (de 2017) para este, houve um incrível crescimento da personagem, mas isso é uma opinião totalmente pessoal. Pois ninguém se iguala ao Poirot interpretado por David Suchet numa série televisiva.
Apesar das traições já relatadas, o miolo da trama é respeitado e contado de maneira bem adequada. Ou seja: antes de ler o livro, veja o filme. E se gostar do filme, evite ler o livro para não se decepcionar.